Scenas da Ro'a (Portuguese)

Category: Poetry
AO MEU LIVRO


Vae, filho, j' tens idade,
j' ficaste emancipado;
precisas correr o mundo,
saber de tudo um bocado.
Vae, filho, mas s' prudente,
ouve os conselhos de gente
que puder te aconselhar;
s' modesto e delicado...
em fallar pouco e acertado
ha sempre muito a ganhar.

Se alguma gloria colheres,
n'o te ufanes sem raz'o:
's vezes ouve-se um tolo
por m'ra contempla''o.
Escuta os indifferentes.
Os amigos e os parentes
n'o dizem toda a verdade.
Agora, no teu caminho,
n'o te basta o meu carinho
nem toda a minha amizade.

Se ouvires phrases sensatas,
presta-lhes toda a atten''o;
a tolos n'o d's ouvidos
nem provoques discuss'o.
Respeita as cren'as alheias;
mas guarda as tuas id'as
e corrige os teus defeitos.
Na escola da sociedade,
estuda, aprende a verdade
nas phrases de seus eleitos.

Vae, filho, Deus te acompanhe.
Das letras no vasto mundo
bem poucos b'iam ' t'na,
grande parte vai ao fundo.
Ai! neste momento extremo
' por ti, filho, que eu tremo!
attende aos conselhos meus...
J' s'o horas da partida;
comtigo vae minha vida,
mas parte... vae... filho, adeus.




CANTO PRIMEIRO


I

Ha quem diga que a franceza
' a mulher por excellencia;
mil outros d'o preferencia
aos requebros da hespanhola:
dizem que ella prende e mata
quando a melena desata
e no fandango arrebata
ao trinar da castanhola.

As bellas filhas da Italia
tem milh'es de adoradores,
l' na patria dos amores
quem d' leis ' o cora''o.
' tudo vida, alegria,
feixes de luz, de harmonia,
ondula em torno a poesia
nesse mar da inspira''o.

Eu acho a todas bonitas
quando de veras o s'o,
quer sejam do Indost'o,
d'Allemanha, Italia ou Fran'a;
mas p'ra mim a brazileira
d'entre todas ' a primeira:
' gentil, ' feiticeira
como um sorrir de crean'a.

As outras guardam comsigo
da velha Europa a imponencia;
estas n'o, tem a innocencia,
tem o perfume das fl'res;
captivam pelos encantos
ingenuos puros e santos,
e s'o, meu Deus, taes e tantos,
que fazem morrer de amores!

Quem p'de escutar-lhe as fallas
quando a tremer de receio,
baixando os olhos no enleio
em que a prende o cora''o,
ella diz corando e rindo:
'Do meu ceu de amor inflado,
tu 's o astro mais lindo
da maior constella''o!'?

Quem p'de conter no peito
o travesso cora''o?
quem n'o sujeita a raz'o
ao dominio dessas fallas?
quem n'o se abraza nos lumes
da mulher que tem perfumes,
de que as rosas tem ciumes
se v'o se encontrar nas salas?
..............................


II

Meu leitor, deixa a cidade e vem comigo
que eu quero te mostrar um quadro bello;
vem ' ro'a onde o amor ' mais sublime,
e tudo quanto ' grande mais singelo.

Eu prefiro 's harmonias de uma orchestra,
aos encantos que doudejam nos sal'es,
a cantiga do tropeiro descuidoso,
ou as trovas amorosas dos sert'es.

Ha naquelles improvisos mal rimados,
e naquella inspira''o de cada instante,
a belleza original que parte d'alma
sem arte, mas com fogo delirante.
.................................


III

Elle era um mo'o bonito
como na c'rte n'o ha,
tinha os olhos e os cabellos
da c'r do jacarand'.
Um porte airoso, engra'ado,
rapag'o desempenado
de metter inveja a cem!
se na estrada elle passava,
a mo'a que o espiava
lhe ficava querendo bem.

Mas elle guardava firme
no fundo do cora''o
pela bella Margarida
a mais ardente paix'o.
E as mo'as da visinhan'a
ao verem sua esquivan'a
's festas, se ella n'o ia,
diziam de enciumadas:
'--Pedro est' de azas quebradas;
pobre mo'o! quem diria?!

'--E tem s' vinte e tres annos
e alguma cousa de seu!
vejam s' o que ' fortuna;
t'o feliz nunca fui eu!
--E dizem que casa breve?
--Eu n'o sei, mas elle deve
casar-se p'ra o fim do anno.
--Que lhe fa'a bom proveito...
--E o velho est' satisfeito?
--Pudera n'o! bem ufano!'

Tal eram os commentarios
que em toda a parte faziam
as mo'as da visinhan'a,
que em festas se reuniam;
mas elle, surdo aos rumores
que faziam seus amores
nas discuss'es femenis,
nada via al'm do encanto
d'aquelle amor puro e santo,
d'aquelles olhos gentis.

Mas quem era a linda mo'a
a quem Pedro tanto amava?
quem era a virgem formosa
que elle assim idolatrava?
era rica ou pobresinha?
tinha-lhe amor ou n'o tinha?
N'o ' o que queres saber?
l' vamos, leitor querido,
satisfazer teu pedido,
j' tudo vamos dizer.


IV

Ella tinha quinze annos; era um anjo
de gra'a, candidez e de bondade,
e aquelle cora''o de meiga pomba
amava como se ama nessa idade.

A todos occultava aquelle affecto
que su'alma marchetava de illus'es;
dos sonhos c'r de rosa que ella tinha
quem pode descrever as emo''es?

De manh' apoz a prece fervorosa,
fictados nos do Christo os olhos bellos,
regava o seu canteiro, e de violetas
um raminho prendia entre os cabellos.

'Tomava o seu balaio de costura,
tirava linha, agulhas e dedal,
e sentava-se a coser o dia inteiro
' sombra da mangueira do quintal.

's vezes descuidando seu trabalho,
parada co'o olhar ficto na estrada,
no mar da phantasia, como um cysne,
boiava da corrente ' fl'r levada.


V

Tal era a mimosa filha
do velho Sim'o da Cruz;
de sua velhice o arrimo,
alegria, vida e luz.
Revia no rosto della
a companheira extremosa,
que lhe deixara, murchando,
o rebent'o de outra rosa.

Vio-a crescer sob os olhos;
estudou-lhe o cora''o,
e lia nelle os mysterios
d'aquella ardente paix'o.
Um dia toma-lhe o bra'o,
fal-a sentar a seu lado,
e diz-lhe rindo o bom velho:
'J' tens algum namorado?'

Enrubece, treme, ensaia
dizer uma phrase, em v'o!
repete o velho a pergunta,
e ella responde '--N'o...
--N'o mintas, filha! n'o sabes
que ' um peccado mentir?
--Perd'o meu pai!--N'o perd'o
a quem me busca illudir.'

Dos bellos olhos da mo'a
o pranto desce a torrentes,
cujas bagas v'o no seio
embeber-se encandescentes.
O velho, ameigando a falla,
apoz miral-a um instante,
lhe torna: '--Vamos! n'o chores!
n'o ' Pedro o teu amante?

'Bom rapaz! ' de meu gosto...
j' fallou-te em casamento?
e tu disseste que sim,
sem o meu consentimento?!
Como os filhos s'o ingratos!
este mundo como vae!
quem de uma filha os segredos
guardar' melhor que um pai?

'Mas vamos l'! estou por tudo;
disseste que sim? est' dito!...
fizeste mal em negal-o;
isto assim n'o ' bonito.
N'o chores, d'-me um abra'o!
ser' Pedro o teu marido;
' justo, se o amas tanto...
se foi o teu preferido...


VI

Estamos em junho, no mez das fogueiras,
do riso, das festas, das sortes, do amor,
das cannas assadas, car's e batatas,
dos jogos de prendas, do fogo em redor.

Quem p'de na ro'a ficar, pregui'oso,
dormindo na r'de, sem ir ao pagode?
se as mo'as bonitas l' est'o feiticeiras
cantando e sorrindo, fugir-lhes quem p'de?


VII

Na fazenda do Tymbira
era velha a devo''o
de fazer-se grande festa
em dias de S. Jo'o.
O velho Joaquim Medeiros,
que era a fl'r dos fazendeiros
d'aquella localidade,
esfregava as m'os contente
quando via em casa gente
a que o prendia a amizade.

D. Olympia, sua esposa;
m'i dos pobres do logar,
tres dias antes da festa
n'o parava a trabalhar.
Mandava as suas mucamas
dos quartos fazer as camas,
espanar tudo e varrer,
e, doceira de bom gosto,
l' estava firme no posto,
fazendo o tacho ferver.

Fazia doce de c'co,
laranja, cidra, lim'o,
bom-bocado, arroz de leite,
bolinhos de S. Jo'o,
pamonha, cus-cus de milho,
manou', biju, sequilho,
biscoutinhos de araruta,
tar'cos, baba-de-mo'a,
e, mil doces que na ro'a
se fazem de toda a fructa.

No terreiro da fazenda
preparava-se a fogueira,
e o mastro todo enfeitado
de folhagens de mangueira;
e dentre as folhas escuras
sahiam fructas maduras,
como ' o costume geral,
e uma boneca vistosa
de vestido c'r de rosa,
fazia o t'pe final.

No campo desde a porteira
de verde murta vestida,
duas linhas de coqueiros
vem a porta da saida.
De um lado a outro correndo,
dirigindo ou desfazendo
o que n'o estava direito,
andava o rei dos festeiros
o nosso velho Medeiros
sempre alegre e satisfeito.

'--Vamos com isso, rapazes,
que temos mais que fazer
e d'aqui por uma hora
ninguem se p'de mecher.
Joaquina e Manuela,
voc's v'o l' p'ra capella
capinar ali na frente.
Ol', moleque, ' vadio!
chega ali embaixo no rio,
v' se vem alguma gente.

'Vicente, traze as bandeiras,
vai tu com elle, Francisco;
Manuel, varre p'ra um canto
e apanha depois o cisco.
N'o quero ver uma palha!...
veja depois como espalha
essas folhas de mangueira!...
' Job, pergunta ' sinh'
se j' tem caf' por l',
que mande aqui na porteira.'


VIII

Se eu soubesse descriptiva
dava aqui em perspectiva
a fazenda toda inteira!
tomava tinta e pincel
e sobre plano-painel
transportava... mas ' asneira...

Eu n'o pesco nem pitada
dessa insulsa trapalhada,
de linhas, pontos e tra'os;
mas tambem n'o me entriste'o,
' sciencia que aborre'o,
cansa a cabe'a e os bra'os.

E na falta de sciencia,
eu pe'o condescendencia
p'ra o tra'ado que vou dar;
' obra de um curioso...
meu leitor, sei que 's bondoso,
n'o o queiras censurar.


IX

O todo se emmuldura em matto virgem;
arbustos mil em fl'r d'o-lhe a fragancia,
e o fundo do painel ' verde-escuro
da c'r de um cafesal visto ' distancia.

Por entre as pedras soltas de seu leito,
o rio serpenteia murmurando.
De um lado a horta, o engenho, alguns pomares,
do outro, os animaes que est'o pastando.

Aqui o mandiocal n'um morro enorme,
naquelles ' direita, ' o cafesal;
ha uma socca de arroz junto do brejo
e da cerca p'ra l', o cannavial.

No centro, n'uma dobra do terreno,
a casa que ' voltada p'ra o nascente;
precede-lhe o jardim, primor de gosto
que a abra'a pela esquerda e pela frente.

Ao fundo em duas ruas parallelas
a casa da farinha, a do feitor,
pai'es, estrebarias e senzallas,
o tanque, o gallinheiro, e corador.

Olhando p'ra direita v'-se a escada
que tem de cada lado uma mangueira,
o campo e o caminho em linha recta,
que da casa vae parar junto ' porteira.

Concebe o quadro l' como puderes!
eu dou-te aqui apenas um bosquejo,
querel-o completar f'ra loucura,
se bem que fosse grande o meu desejo.

L' chega o rancho enorme e folgas'o
que vem p'ra festejar o S. Jo'o.

De quatro leguas em roda,
toda aquella visinhan'a
veio assistir ' festan'a
da noite de S. Jo'o.
O povo da freguezia
quazi todo nesse dia,
ia como em romaria
pandegar por devo''o.

Como ' uso admittido,
a pess'a convidada
leva roupa preparada
para quatro ou cinco dias!...
l' na ro'a a moda ' esta;
qualquer pagode, n'o presta
sem a semana de festa,
de intermin'veis folias!

Subindo e descendo morros,
n'um carro por bois puchado,
n'um tunel improvisado
de arcos e de uma esteira,
de uma fazenda visinha
a passo lento caminha
a familia que se aninha
n'essa amavel capoeira.

Atraz os negros da casa
T'o carregando os bahus,
sem camisa, quazi n's,
e alagados de suor;
ao lado caminha a passo,
n'um lindo macho pica'o,
o fazendeiro rica'o
que vae morto de calor.

Os filhos v'o a cavallo.
Na frente caminha o pagem,
que sem esse personagem
na ro'a n'o se ' ninguem!
' um negro de confian'a
em quem o Senhor descan'a,
que exerce desde crian'a
o cargo honroso que tem.

Usa jaqueta de vivos,
chapeo baixo de oleado,
topete bem penteado,
canos de bota e chilenas;
' o mensageiro de amores
dos filhos de seus senhores;
leva cartinhas e fl'res
para entregar 's pequenas.

O pagem da ro'a ' um typo
de serio e acurado estudo,
sabe um bocado de tudo
quanto se deve saber.
' ferrador, ' selleiro,
carapina e corrieiro,
' pe'o e no terreiro
requebra um fado a valer.

Aqui um rancho de mo'as
vae a p', moram t'o perto!...
s'o duas leguas, ' certo,
mas diz-se na ro'a:--' ali.
E por toda aquella estrada
v'-se gente a p', montada,
e outra que j' can'ada
bebe ' sombra paraty.
...................................
...................................
...................................


X

Terminou-se o jantar, ' noite escura;
com fachos de sap' ligeiros correm
os mo'os dando vivas.
Accende-se a fogueira e em torno a ella
v'o sentar-se alegres, descuidosos,
os grupos de convivas.

Aqui tomam garapa em lisas cuias,
os velhos, que disputam seriamente
'cerca de elei''es,
ou fallam do caf' que est' sem pre'o,
nos gastos da lavoura e poucos lucros
de suas transac''es.

Ali as mo'as todas reunidas
dissertam sobre amor e namorados
com tal proficiencia,
como um lente, jubilado na materia,
derramando em qualquer academia
a luz da experiencia.

N'o longe os rapazes formam grupos:
uns s'o republicanos exaltados
e outros monarchistas;
e outros sem partido, olhando as mo'as,
a morrer de amor por ellas, contam rindo
amores e conquistas.

' tudo anima''o, prazer e vida...
aqui um bello dito, ali vozes confusas,
gostosas gargalhadas;
estouram buscap'es, rebentam bombas,
foguetes e bal'es erguem-se aos ares
no meio de apupadas.


XI

'--Qual, compadre, desta feita
parece que os liberaes
n'o sobem, n'o, mas ' o mesmo...
que me diz, Sr. Moraes?

'--Eu n'o sei, mas desconfio
que os homens n'o fazem nada;
pelo menos l' na villa
' tudo chapa cerrada.

'--Aposto cem contra dez,
com quem quizer apostar,
em como os conservadores
h'o de ceder o logar.

'E o Brazil vae ' garra
se os liberaes n'o subirem;
que projectos, quanta cousa
se perde, se elles cahirem!

'Estradas e mais estradas,
navega''o pelos rios;
h'o de fazer o diabo
porque empenharam seos brios.

'--Ora adeus, em quanto a brios
os outros tambem os tem;
e ninguem lhes passa a perna,
porque fallam muito bem.


XII

'' Gringo, salta a fogueira!
' Guillon, pula tambem!
assim, Norberto! um, dois, trez...
sim, senhor, foi muito bem!

'_Seu_ Z' Carlos, largue a mo'a!
n'o seja namorador!
j' temos nova conquista?
vem p'ra aqui, ' seductor.

'O Oct'vio l' est' n'um canto
a scismar _encalistrado_!
que tem elle?--Ora o que tem!
anda muito apaixonado:

'Dizem que elle foi a um samba
e de l' veio cahido...
mas espera, olha o Zamith
como est' todo lambido!

'E o Licurgo? oh que maroto!
desde que elle se casou
est' com ar de homem serio,
ficou bonito, engordou!...

'Tira os car's do rescaldo,
moleque, traz o melado!
oh ladr'o, anda ligeiro...
este sim, est' bem assado

'' s' da tropa fandanga!
ninguem mais aqui se metta!
Ezequiel, tu n'o comes?
est's forjando alguma p'ta?


XIII

'--Pois creia, sinh' Chica, foi olhado
botado na pequena com certeza;
Cand'ca esteve assim, mas foi resal-a
a sogra do Manduca, a nh' Thereza.

'Foi l' trez sextas-feiras, em seguida
benzeu e deu-lhe uns _p'ses_ p'ra tomar;
e hoje, benza-a Deus, est' que ' um gosto!
s' vendo ' que se pode acreditar!

'--Pois olhe, p'ra fallar minha verdade,
j' tinha me _alembrado_ ser feiti'o...
n'o podia sen'o ser cousa feita..
pelos modos que ', s' se foi isso.

'A menina tem uns flatos pelas costas,
e anda jurur' que mette pena!
coitada! tem tomado mil mesinhas
e nada de arribar; pobre pequena!

'--Quem sabe, diz a tia Marcolina,
que entende destas cousas como gente,
quem sabe se a espinhela tem caida?!
se for isso, ponho-a boa de repente.

'A lua agora ' nova... pouco importa,
na sexta-feira cedo mande-a l',
que com favor de Deus tenho esperan'a
que volta s' e salva para c'.'


XIV

Eu n'o sei porque ' que em toda a festa
se encontra sempre um b'bo, um toleir'o,
dizendo muita asneira e se inculcando
rapaz de muita gra'a e sabich'o!

' festa de Medeiros foi um typo,
a quem debalde eu busco descrever;
deix'ra a c'rte onde era um _petit-maitre_
e ' ro'a foi levar todo o saber.

Fallava sempre em termos empollados,
mirava-se ao espelho a cada instante;
usava cita''es em qualquer lingua,
e tinha o ar altivo do pedante.

Frisada a cabelleira e com pastinhas...
gravata verde-mar, o fraque azul,
as luvas c'r de cinza, a cal'a branca,
sapatos de verniz; eis meu taful.

Desceu para o terreiro, olhou em torno
buscando achar um pobre a quem massar,
e eil-o dentro em breve n'uma roda,
com todo o seu furor a disputar.

'--Perd'o, dizia o typo enthusiasmado:
eu sou republicano, e como tal
exijo a liberdade a mais completa,
quer na ordem civil, quer na moral.

'A lei ' um empecilho ' liberdade,
o que a dicta ou a imp'e ' um vil tyranno
os povos n'o precisam de governo,
o exemplo est' no povo americano!

'_To be or not to be_, eis como eu penso;
abaixo a realeza e o seu prestigio;
o rei a quem o mundo hoje se curva
escreve--Liberdade--em gorro phrigio!'

Fallou e disse asneiras muito tempo
at' que ficou s', sem mais ninguem!
'--Camellos! disse elle em tom baixinho,
nem sabem de que ponto a luz lhes vem!'

Mas vendo ao longe a bella Margarida,
exclama o nosso her'e: '--Oh! _c'est charmant!_
_Mignone_, vaes ser minha, assim t'o juro...
e agora ella est' s'! _c'est bien l'instant_.

E assim dizendo applica o _pince-nez_
e vae sentar-se ao lado da menina.


XV

'Desculpe vossa excellencia,
mas eu creio que j' a vi!
--P'de ser, responde a mo'a,
quasi sempre eu venho aqui...'
'--N'o foi aqui, foi ha um anno...
na c'rte, se n'o me engano,
n'um baile que eu a encontrei...
--Oh! gentes! est' enganado,
se perguntar p'ra que lado
a c'rte fica, n'o sei!'

'--Era ent'o o seu retrato
divinamente imitado...
os mesmos olhos divinos!
o mesmo rosto adorado!...
'--Oh! senhor, parece incrivel!
deveras ser' possivel
t'o pasmosa semelhan'a?!
--Oh! natura eterna e infinda!
nunca vi mulher t'o linda!...
--Eu sou linda? que esperan'a!

'--Ent'o n'o vio Guanabara
da metrop'le no rega'o,
sonhando loucos edyllios
co'os olhos fitos no espa'o?!
'--N'o senhor! se eu n'o conhe'o!'
'--Escuta, diva, eu te pe'o:
sou talvez um sonhador...
--Oh! mo'o, mal comparando,
quando o senhor est' fallando
parece-me um pregador!'

'--Serei tudo, ' casta diva,
innocente Julieta!
tu'alma exhala o perfume
da modesta violeta!...
--_U'_! que mo'o engra'ado!
j' deu-me o nome trocado...
eu me chamo Margarida.
--Margarida? Oh! doce encanto!
teu nome t'o puro e santo
guardarei al'm da vida!

'Escuta, sylpho do empirio,
dos c'us aerea vis'o,
n'o sentes do amor as lavas
que arroja o meu cora''o?
partamos, al'm na selva
sobre um tapete de relva,
pousemos o floreo ninho!
partamos, a noite ' densa...
--' mo'o, eu pe'o licen'a,
eu vou fallar com dindinho!

'--_Comment cel'!_ n'o me deixes
com tua ausencia obumbrado!
queres tu que um cenotaphio
erga a um amor desgra'ado?
--Oh! _seu_ aquelle, me deixa!
sen'o eu vou fazer queixa
a meu pai, largue meu bra'o!..
--N'o partas, anjo bemdito...
--Eu sou grossa p'ra palito...
--Ao menos d'-me um abra'o!...'


XVI

Tal como ao terminar-se da espoleta
o mixto que de um jacto a carga inflamma,
e no rouco troar detona a bomba
cuspindo os estilha'os, fumo e chamma,

assim do meu le'o, na face n'a,
por m'o callosa e firme manejada,
a bomba do ciume arrebentara
e com ella uma tremenda bofetada!

Zumbiram-lhe aos ouvidos mil besouros,
myriades de estrellas viu ent'o;
sahiram-lhe faiscas pelos olhos,
perdera o equilibrio, e... foi ao ch'o!

De p', em frente a elle estava um homem,
raivoso como tigre olhando a preza;
nos olhos faiscava-lhe o ciume,
nos labios um sorrir de atroz dureza!

' Pedro, que no seu amor selvagem
n'o p'de reflectir, sabe vingar;
feriam-lhe de morte as cren'as d'alma,
e o tigre que ' ferido quer matar.


XVII

'--Pedro! Pedro! ent'o que ' isto?!
valha-me Nossa Senhora!
--Margarida, vae-te embora,
tu n'o me queiras perder!
--Pelo que tens mais sagrado,
deixa esse mo'o, coitado!
que mais lhe queres fazer?!...

'--Quero mostrar a um patife
como se falla a uma mo'a;
elles pensam que na ro'a
' como l' na cidade?!
'Est'o enganados comigo!...'
E com o joelho no umbigo
dava-lhe s'cco ' vontade!

'--Soccorro! gritava a mo'a
quazi louca de terror;
meu pai, accuda o senhor,
porque elles se v'o matar!...
meu Pedro, n'o sejas louco,
olha, escuta, espera um pouco;
meu Deus! quem ha-de apartar?

'--Sahe-te d'aqui co'os diabos!
n'o me atormente a cabe'a,
puche j', n'o me aborre'a...
voc' pensa que me emba'a?
' tambem teu namorado?
ha de amargar um bocado,
hei de tirar-lhe a fuma'a...

'--Repare que ' minha filha;
escutou, _seu_ malcriado?
sou velho, estou alquebrado,
mas ninguem me offende em v'o!
sei tolerar n'essa idade
loucuras da mocidade;
mas insultal-a, isso n'o!

'Margarida ' muito honesta!
n'o ' l' quem voc' pensa!...
acho bom que se conven'a
que ella tem alguem por si!
Vem-te embora, minha filha,
o homem, que assim te humilha,
' mais que indigno de ti.'


XVIII

Chegara emfim Medeiros e ' contenda,
poz termo com palavras convincentes;
do ch'o suspende o pobre Lovelace,
separa os dois mancebos imprudentes.

--Levando pelo bra'o o seu Juquinha,
com elle vae p'r'a sala de jantar
e p'de ver ' luz, banhado em sangue,
o triste _petit-maitre_ a solu'ar!

O rosto lhe lavaram com cacha'a,
ficando para todos bem patente,
que os bei'os, o nariz e o olho esquerdo,
mais gordos lhe ficaram de repente.

Depois tinha cansa'o, foi p'ra um quarto
que dava uma janella p'ra o jardim,
despio-se, tomou banho, foi deitar-se...
dormio? n'o sei dizer, creio que sim.

A festa terminou neste incidente
e cada um tratou de se ir deitar:
a lua ia bem alta al'm no ceu,
e o gallo amiudava o seu cantar.


XIX

Dona Olympia ouve um gemido
partir de seus aposentos;
chegou-se ' porta de manso
prestando ouvidos attentos...

Era a pobre Margarida
que entre solu'os sem fim,
co'o rosto nas m'os occulto,
chorava dizendo assim:


XX

'Pelas chagas de teu filho,
pelas d'res que soffreu,
pelo pranto que verteste
quando na cruz te morreu,
valei-me, Nossa Senhora,
nesta d'r que sinto agora!

'Inda a pouco era ditosa,
tinha amor, tinha esperan'a,
de um momento de tristeza
n'o tenho a menor lembran'a!
eu sorria ao ver-me assim;
meu sorrir j' teve fim...

'De tudo quanto j' tive
que mais me resta? mais nada!
quiz provar-lhe o meu affecto
e fui vilmente insultada!
Ai, Pedro! que me mataste
quando assim me injuriaste!

'Agora que mais espero?
que esp'ran'a mais posso ter?
venha a morte e venha breve,
que sou feliz se morrer!
Que Deus lhe pague em prazer
o quanto me fez soffrer.'


XXI

Dona Olympia entreabrio de manso a porta,
e sem bulha chegou-se junto a ella,
tomou-lhe as m'os nas suas, vio-lhe o pranto,
beijou a meiga face da donzella...


XXII

'--Que ' isto, minha louquinha?
quem ' que falla em morrer?!
viste um espinho na vida
e j' te can'a o viver!
Nas tuas suppostas d'res
s' recordas-te os amores,
mas esqueceste teu pai!...
Margarida, 's muito ingrata!...
queres matal-o?... pois mata!
vae pedir a morte, vae!

'Ao pobre e can'ado velho
que vive do teu carinho,
em vez de beijos e abra'os,
crava-lhe n'alma um espinho!
Arrufos de um namorado
valem mais que um velho honrado?!
Pensas bem, minha afilhada!..
vaes morrer? n'o te demores!
mas o que ' isto? n'o chores!
que vale um pai?... quasi nada!

'--Misericordia, madrinha!
n'o falle assim que enlouque'o!
meu Deus! qual foi o meu crime
que tal castigo mere'o?!
--Teu crime ' n'o ter juizo....
e sabes o que ' preciso?
': pedir a Deus perd'o.
Limpa esses olhos, menina!
a gente assim se amofina;
tu choras sem ter ras'o!

'--Mas elle est' mal commigo
e meu pai nem o quer ver!
--Cala a boca, te prometto
que tudo se ha-de fazer.
Socega, filha: descan'a,
se ainda tens confian'a
na tua velha madrinha!
Amanh' em santa paz
tudo se arranja e se faz;
vae dormir, minha louquinha?'


XXIII

Margarida radiante da alegria
que sentia renascer no cora''o,
abra'ava com transporte aquella amiga
e cobria de mil beijos sua m'o.




CANTO SEGUNDO


I

Oh tu quem quer que sejas, meu leitor,
attende ao que te digo: a ti o auctor
come'a por te dar os parabens
da somma de pachorra que tu tens,
se leste esse arremedo de poesia
sem arte, sal, perfumes e harmonia,
que p'ra ahi rabisquei sem tom nem som.
J' vejo que 's rapaz prudente e bom...
desculpa o tratamento... as etiquetas
exigem luva branca e roupas pretas;
mas isto ' muito bom p'ra deputados,
que vivem simplesmente de apoiados
e gastam excellencia a tres por dois...
coitados! s'o mal pagos... e depois
sujeitos a caprichos de ministros....
's vezes trazem rostos t'o sinistros,
que chego a ter de v'ras compaix'o...
Mas dizem que s'o filhos da elei''o?!
a culpa ' ent'o da m'i que os deu ' luz,
que tinha atraz da porta aquella cruz,
envolta n'um programma e mil projectos
p'ra os hombros dos filhotes mais dilectos!...
S' franco, meu leitor, se estou massando,
arr'lho a discuss'o e vou tratando
do resto d'esta historia que encetei...
Palavra, que n'o sei onde fiquei...
Mas... eu te escrevo em mangas de camisa;
n'o olhes p'ra o meu trage... quem precisa
pendura com cuidado o paletot,
depois de sacudir-lhe bem o p',
e fica assim ' fresca muito bem.
Quem poupa, meu amigo, sempre tem!
n'o achas que ' verdade, ' magan'o?
pois folgo com a tua opini'o.
As cousas andam m's, tudo est' caro!
o cobre, santo Deus! anda t'o raro!...
ao menos l' por casa ' uma desgra'a!
por mais que se trabalhe ou que se fa'a,
por mais que se amofine uma pessoa,
vem sempre a dar na mesma, ' sempre ' t'a,
Fallemos n'outra cousa, as digress'es
arredam sempre o fio 's discuss'es.
Entremos na materia francamente,
vejamos o que ' feito desta gente.


II

O dia amanheceu bastante frio.
No ch'o, sobre os sof's e nas cadeiras
dormiam somno solto os convidados,
em duzias de colch'es e mil esteiras.

O nosso fazendeiro acordou c'do,
e poz as cosinheiras logo em p';
sentou-se na varanda lendo as folhas
' espera que trouxessem-lhe o caf'.


III

'--Ora bom dia, _seu_ Pedro!
--Bom dia, Sr. Medeiros!
--Ainda o fazia dormindo
e vejo que ' dos primeiros!...

'Ent'o estranhou a cama?
passou mal, n'o ' verdade?
--N'o, senhor! pelo contrario,
perfeitamente ' vontade.

'--Li agora na _Gazeta_
um facto bem curioso!
um sujeito, um estrangeiro...
mas que homem ardiloso!

'Engole uma espada inteira!
que barriga! Ave Maria!
--Mas ' serio?--Oh! se o n'o fosse
a folha n'o o diria...

'O que ' isto?! onde se atira
j' de esporas? onde vai?!
--Vou... eu ia at' l' embaixo.
--N'o, senhor, hoje, n'o sahe.

'--Mas escute, _seu_ Medeiros...
--N'o escuto, n'o senhor;
j' queria p'r-se ao fresco?
enganou-se, meu amor!

'' homem, 'stou te estranhando!
voc' que ' t'o pagodeiro!
--Eu ia v'r se l' embaixo
recebia hoje dinheiro...

'--Qual dinheiro, qual historia!
eu bem sei o que isto '!...
Sabes que mais, pucha um banco
e vamos tomar caf'.

'--J' que de todo ' preciso
vou lhe fallar francamente...
--Pois desembucha, rapaz,
fallando se entende a gente.


IV

'--O senhor bem me conhece...
n'o sou homem de quest'es,
nem ando brigando ' t'a
por qualquer duas raz'es;
mas hontem foi desaforo!
o sujeito de namoro
co'a minha noiva, e eu ali!
isto n'o ' fazer pouco?...
parti c'go como um louco...
nem sei bem o que senti...

'Eu vinha de orelha em p'
ouvindo o palavreado!
n'o sei o que... de epitaphios...
e d'ahi por um bocado,
agarrou-lhe por um bra'o
e quiz lhe dar um abra'o,
no momento em que cheguei!
fiquei damnado da vida!
e co'a cabe'a perdida,
por milagre o n'o matei!...

'Depois... n'o ouvi mais nada...
todo este povo a gritar...
ouvi o senhor fallando,
quando nos veio apartar...
mas estou incommodado
do negocio se ter dado
n'uma casa que eu respeito...
em outro qualquer logar,
n'o me importava brigar
at' um ficar desfeito!...

'--Tudo isso nada vale!
n'o penses nisto, rapaz....
s'o cousas que a gente mo'a
mais ou menos sempre faz.
--N'o, senhor, eu bem conhe'o
que isto ' m'u; mas o que pe'o
' que queira perdoar...
's vezes l' vem um dia...
e a gente est' de _arrelia_,
n'o se p'de dominar...

'--Vamos fallar de outra cousa,
isto ' pura crian'ada...
que fizeste ' Margarida?!
--Quando?--Hontem!--N'o fiz nada!
--Pois olha, metteu-me pena
v'r a pobre da pequena
chorando, n'o sei porque...
--Ella chorou? mas que tinha?
--N'o sei, fallou co'a madrinha
e a respeito de voc'.

'--A meu respeito?! e que disse?!
--Como j' estavas zangado,
disseste-lhe alguma cousa...
e te excedeste um bocado...
--Eu, meu Deus?! ainda mais esta!
vejam s' que b'a festa!
que S. Jo'o tenho eu!...
e tudo, veja o senhor,
por causa desse impostor,
desse barbas de judeu!

'' uma nuvem passageira...
n'o te d' isso cuidado;
voc's fazem logo as pazes
e est' o negocio acabado.
Falla tambem co'o Sim'o...
o velhote tem raz'o
de estar massado comtigo...
foste offender ao coitado,
que ficou bem magoado;
mas o velho ' teu amigo.'


V

Vinha chegando alguem e esta conversa
ficou neste logar interrompida;
v'o pouco a pouco erguendo-se as visitas,
renova-se o prazer, renasce a vida.

Estava tudo em p'; por'm o Juca?
estava ainda no quarto, ainda dormia?
'--' senhor! v'o acordal-o, j' ' tarde
e basta de dormir: ' meio dia.'

A mesa estava posta, e o fazendeiro,
que o n'o vira des que o dia amanheceu,
abre a porta e s' encontra sobre a mesa
uma carta p'ra si, que abriu e leu:


VI

'_Meu caro Sr. Medeiros:
vou p'ra c'rte no trem mixto
que sahe d'aqui a uma hora.
Desculpe, se fa'o isto
sem lhe ter agradecido
o seu bom acolhimento;
mas pode estar convencido
de que no meu cora''o,
p'ra com vossa senhoria
fica eterna gratid'o.
Se f'r ' c'rte algum dia
contar-lhe-hei como foi
a quest'o. N'o tive a culpa;
o que lhe pe'o ' desculpa
pelo modo desairoso,
porque saio da fazenda.
Vou bem triste e pesaroso
por causa d'essa contenda,
que n'o julguei provocar.
S'o horas de me ir embora...
recommende-me ' senhora
de quem parto penhorado.
Adeus, aceite um abra'o
do seu amigo e criado...
JOS' DE SOUZA CABA'O._'


VII

Medeiros releu a carta,
dobrou-a, poz na algibeira
e disse com seus bot'es:
'--Ora ahi tem a brincadeira!

'Um ficou todo mordido!
o outro--todo esfolado!...
qualquer dos dois, de juizo
n'o tem sequer um bocado!

'Que dois malucos de for'a!
valha-me a Virgem e o Christo!
qual dos dois ter' raz'o?...'
e sahio pensando nisto.

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VIII

E os donos da casa empenhados
em fazer a reconcilia''o
conversavam co'os noivos e o velho,
num cantinho do grande sal'o.

Houve protestos, desculpas,
suspiros, explica''es;
e afinal l' se entenderam
com muito boas raz'es...

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IX

'--Vamos p'ra mesa, senhores,
que o almo'o est' esfriando!
deixemos as ceremonias!
cada um v' se sentando.

'Falta aqui um guardanapo...
Olympia, manda buscar...
quem quer leit'o recheiado
levante um dedo p'ra o ar.


X

'Senhores, disse o bom Joaquim Medeiros,
(e tudo se callou para escutar)
eu tenho uma noticia de importancia,
que quero a todos v's communicar.

'Ali minha afilhada Margarida,
se bem que me escondesse agora o rosto,
vae com Pedro, o patusco, felizardo!
casar-se p'ra meado ou fins de agosto.

'E como eu sou padrinho do casorio,
que ha de effectuar-se na fazenda,
convido a todos v's para assistirdes
ao n' que n'o tem pontas, nem se emenda.

'E aqui o _seu_ vigario, que ' de casa,
aprompta a papellada n'um momento,
e ha de me amarrar estes pombinhos
benzendo-lhes os anneis do casamento.

'Bebamos, pois, dos noivos ' saude!
Senhores, a saude ' feita em p'!
Hurrah! ip! ip! hurrah! vivam os noivos!
a coisa ' de virar, ip! bangu'!'


XI

Sim'o ergueu-se a custo, e commovido
fallou desta maneira aos assistentes:

'--Senhores, quando a alegria
nos afoga o cora''o,
n'o ha palavras que a digam,
falta-nos toda a express'o!

Choramos quando soffremos,
quando gosamos, sorrimos,
mas o riso n'o exprime
o que n'alma n's sentimos.

'Assim 'stou eu; bem quizera
dizer-vos neste momento
tudo, tudo quanto sinto,
qual ' o meu contentamento,

'mas n'o posso, porque ' tanta
a minha felicidade,
que mais me parece um sonho,
que pura realidade!

'E sabeis a quem a devo?
a quem posso agradecer?
quem ' que em duas palavras
me embriaga de prazer?!

'' aqui a m'i dos pobres
e o meu compadre Medeiros!
este grande cora''o!
a nata dos fazendeiros!

'' saude, pois, d'aquelles
que n'o tem ostenta''o,
quando afogam na alegria
um mirrado corra''o!'

E todos gritavam co'os copos erguidos
dos donos da casa, bebendo ' saude:
'Que Deus lhes d' vida, que Deus os conserve
p'ra auxilio dos pobres, p'ra amparo ' virtude.'

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Passados oito dias de prazer,
oito dias de festa e de alegria,
v'o indo pouco a pouco os convidados
saudosos, p'ra o lidar de cada dia.




CANTO TERCEIRO


I

Os peralvilhos da c'rte,
ou cidades principaes,
todos querem ser poetas,
todos fazem madrigaes
quando est'o apaixonados.
Em versos estropiados,
alguns que tem legoa e tanto,
a pobre da musa s'a,
suspirando ' luz da lua
em cada suspiro um canto!

Aquelles que nem a tiro
se lhes abre a cachimonia,
assignam versos roubados
com toda a sem ceremonia!
N'o fazem quest'o de auctor...
querem provar seu amor
' deidade que os inspira?
l' v'o direitos ' estante,
e d'ali por um instante
geme e canta a alheia lyra.

S'o estes os commodistas
e os que tem mais raz'o...
p'ra que quebrar-se a cabe'a
se ha versos em profus'o?!
' obra feita, ' verdade:
mas escolhe-se ' vontade
onde ha tanto p'ra escolher...
l' vai a amostra do panno
que um typo fez por engano,
por n'o ter tempo a perder:


II

Oh! virgem pura de meus sonhos lindos,
lyrio mimoso dos jardins dos c'us!
escuta o bardo descantando amores
louco, inspirado nesses olhos teus!

Escuta as notas que desprende a lyra
embevecida neste amor sublime;
nestes accordes, muito embora rudes,
s' a verdade o meu cantar exprime.

Tu 's a fonte inexhaurivel, pura,
onde a minh'alma vae a f' beber,
symbolo da cren'a, de esperan'as f'co,
livro sagrado que me ensina a cr'r.

Tu 's a gota matinal do orvalho
na rubra pet'la de uma fl'r lou'',
limpido espelho de virtude e gra'a,
estrella d'alva em festival manh'.

Tenra avesinha que em gorgeios ternos
a Deus envia o suspiroso canto,
vis'o etherea do sonhar do bardo,
miragem bella de sublime encanto.

Tu 's a lympha, que em ramaes de prata,
borda a campina marchetada em fl'res,
iris formoso da bonan'a emblema,
casto sacrario de gentis amores.

's tudo, tudo quanto ' grande e santo,
astro fulgente de brilhante luz!
Anjo da Guarda que atravez d'espinhos
meus tibios passos ao porvir conduz.


III

Na ro'a n'o se usa disto,
quem faz cerco a um cora''o
improvisa as suas quadras
com a viola na m'o.

E na prima e na segunda
faz um tal repenicado,
que a pequena fica tonta
quebrando o sapateado.

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Quem procura a paz do espirito,
quem busca a felicidade,
ha de encontral-a na ro'a,
raras vezes na cidade.

Ali a vida ' mais calma;
a mudez da solid'o,
' como um balsamo santo
's dores do cora''o.

A doce tranquillidade,
que se desfructa no lar,
illumina aquellas almas
de uma luz crepuscular.

Na festa ha mais alegria...
ha no trato amenidade;
o homem da ro'a ' o typo
da honra e da honestidade.

Se acaso lhes bate ' porta
um estranho, um forasteiro,
tem agasalho e amizade
desse povo hospitaleiro.

Sob uma crosta grosseira
se encontra a sinceridade,
e mais que ninguem conhece
as leis da hospitalidade.

Mas se lhes offendem os brios
sabem affrontas vingar,
que o homem rude do campo
n'o p'de insultos tragar.


IV

Chegara em fim o dia suspirado
daquellas duas almas, que se amavam:
em breve v'o-se unir p'ra todo o sempre
no la'o por que a tanto suspiravam!

Nos meigos olhos della ha mil affectos...
as faces se lhe tingem de rubor,
e os labios entreabertos c'r de rosa
parecem repetir:--ventura, amor!

No rosto do mancebo ha um que de vago
e certa commo''o mal disfar'ada!
' que ' tal a ventura que o espera
que duvida vel-a emfim realisada!


V

'--Escuta, minha afilhada,
tu hoje vaes te casar...
' o passo mais delicado
que uma mulher p'de dar.
A partir desse momento,
do nosso procedimento
depende todo o futuro.
Escuta toda a verdade,
se queres a f'licidade,
este caminho ' seguro.

'No dia do casamento
tudo ' cheio de illus'es!...
julgamos tocar ao termo
das nossas aspira''es.
Mezes depois, vamos vendo
que j' v'o arrefecendo
nossos sonhos virginaes;
passada a illus'o primeira,
a mulher ' a companheira,
uma amiga, e nada mais.

'Ent'o ' preciso emprego
de toda a nossa prudencia,
e ter p'ra com o marido
a maior condescendencia.
Se chega em casa cansado,
dar-lhe carinhos e agrado,
n'o perguntar de onde vem;
elle mesmo ir' dizendo
o que andou por l' fazendo,
ou se esteve com alguem.

'Nunca sejas ciumenta,
nem lh'o d's a conhecer!
o ciume, al'm de inutil,
nos envenena o viver.
S' sempre condescendente...
n'o te mostres exigente
nem lhe pe'as sacrificios:
um pedido caprichoso,
para um marido extremoso,
' um dos grandes supplicios.

'Sempre affavel, carinhosa,
sempre modesta e asseiada...
eis aqui como procede
a mulher bem educada.
Algumas, infelizmente,
ignoram completamente
estas verdades, e ent'o
dizem que s'o desgra'adas;
mas s'o ellas as culpadas,
' falta de educa''o.

'Quando em casa n'o encontram
meiguices, consola''es,
os maridos se aborrecem,
v'o procurar distrac''es...
e uma vez encetado
esse trilho t'o errado,
' um martyrio esse viver!
Deus te livre, Margarida!
a ter semelhante vida,
melhor te f'ra morrer!

'Eis aqui os meus conselhos
que sempre tenho seguido;
e de cumpril-os ' risca
n'o me tenho arrependido.
Desde crian'a a meu lado,
has de ter observado
como trato teu padrinho;
e tenho sido estimada...
se queres ser adorada
faze o mesmo ao teu Pedrinho.'


VI

Adornada a capricho p'ra este dia,
da fazenda a pequena capellinha
estava que era um mimo de bom gosto,
t'o faceira! t'o bem arranjadinha!

Sanefas de setim verde e amarello,
nas paredes damasco alaranjado,
alampadas de prata, quatro lustres,
e um soberbo tapete avelludado.

O todo era singelo, doce e grave,
incitava n'o sei que ao cora''o!
noss'alma sem querer a Deus se erguia
nesse encanto mental de uma ora''o.

L' f'ra repicava alegre o sino...
fest'es, arcos e fl'res no terreiro,
convidados, amigos e parentes,
e sempre satisfeito o fazendeiro.


VII

S'o horas, tudo est' prompto;
todos seguem p'ra capella.
Na frente caminha ella
pelo bra'o da madrinha;
logo atraz Pedro, Sim'o,
Medeiros, uma sobrinha
do vigario, e a multid'o
que caminha alegremente
em ruidosa confus'o.
Era um quadro interessante
de belleza original
o que eu vi naquelle instante:
cabe'as brancas de neve,
rostos graves enrugados
pendidos p'ra sepultura,
a par de frontes divinas,
de olhos meigos namorados
derramando mocidade!
Oh! como ' bella essa idade
em que tudo ' s' prazer!
em que a existencia ' um sorriso,
em que o amor ' um paraiso,
em que o sonhar ' viver!
O grupo entrou na capella
ajoelhou-se, benzeu-se,
resou e depois ergueu-se
e cochichava em segredo;
mas callou-se de repente
quando o padre appareceu.
Margarida estremeceu
e disse machinalmente:
'Agora vou ser feliz.'

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Estava emfim realisado
aquelle sonho dourado
de su'alma casta e pura!
a embriaguez da ventura
tornava-a mais que divina!
aquellas faces rosadas
levemente afogueadas
de prazer e commo''o,
traziam-lhe tal encanto,
que eu creio que at' um santo
succumbia ' tenta''o!

Era finda a ceremonia.
Pedro, qu'inda n'o fallara,
por pouco n'o desmaiara
nos bra'os do fazendeiro,
fulminado de alegria!
e no sorriso nervoso
que d'alma aos labios lhe vinha,
quem ' que n'o traduzia
o que n'alma o pobre tinha?

Passados alguns momentos,
j' depois dos comprimentos
de todos que os rodeavam,
sahiram de bra'os dados
sob uma chuva de fl'res
que em cima lhe despejavam
' porfia, os convidados.

Chegados todos ' casa,
Sim'o e Pedro de um lado
' meia voz conversavam.
Dizia o velho alquebrado:
'Nesta filha que te entrego,
dou-te tudo quanto tenho,
dou-te os olhos, fico c'go,
mas risonho e satisfeito...
eu j' estava t'o affeito
que n'o sei como sem elles
eu possa agora viver!...
ella era o sol bemfazejo
ao qual eu me ia aquecer;
por'm fico descansado,
porque em ti achou arrimo....
eu somente o que lastimo
' ser velho e n'o ter nada,
n'o p'ra mim que n'o preciso,
era por ella, coitada!
que ' um anjo como tu sabes.
Olha, Pedro, eu s' te pe'o,
se alguma cousa mere'o,
que trates bem minha filha!
minha pobre Margarida!
Ella ha de ado'ar-te a vida
porque ' muito carinhosa,
e como foi boa filha
deve ser tambem esposa.'

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E em quanto o velho fallava
da filha por quem vivia,
dos olhos se lhe escapava
uma baga que rolava
e na barba se escondia.


VIII

'--Forma a roda! oh! _seu_ Casusa
n'o fuja, vamos brincar;
v' decidir na viola
para este povo dan'ar.

'--Qual o que! o _seu_ Manduca
' _cabra_ bom tocador,
e eu n'o vou tirar a espada
da m'o de um tal jogador.

'--Vamos ent'o ver os dois
no desafio pegados...
Forma roda! forma roda!
quero ouvir esses damnados.'


IX

E emquanto sapateavam,
os dois assim descantavam:

'--Meu senhor, me d' licen'a
que eu quero principiar:
quero botar uma trova
para quem me faz penar.

'--P'de entrar que o matto ' limpo,
n'o tem on'a, nem queixado,
tem somente uma morena
por quem ando apaixonado.

'--Obrigado, companheiro,
Deus te ajude nos amores;
mas quem gosta das morenas
soffre penas, sente d'res.

'--Eu bem sei de quem tu gostas,
p'ra ella podes cantar;
' clara, tem olhos pretos,
olhos que te h'o de matar.

'--Na barra do teu vestido
anda preso um cora''o,
menina, minha menina,
da minha venera''o.

'--O sip' do matto virgem
amarra o jacarand';
assim, morena, em teus olhos
ando eu bem preso j'.

'--Fui ao matto cortar lenha
e encontrei a jurity,
ella tinha os seus amores
como os eu tenho por ti.

'--Larangeira ' pau d'espinho,
carangueijo anda na praia,
tambem andam meus amores
na renda de tua saia.

'--Os teus olhos s'o de fogo,
tua boca ' uma roseira,
menina, minha menina,
quem te fez t'o feiticeira?

'--Cachorro ladra na cerca
quando vem algum ladr'o,
assim ladra no meu peito
por te ver meu cora''o.

'--Menina, minha menina,
se me n'o queres matar,
d'-me um riso pequenino,
que eu sou bom de contentar.

'--No bra'o tenho talento,
tenho prata na goiaca,
p'ra quem duvidar, comigo
na cintura trago a faca.

'--Voc' me botou olhado,
voc' mesmo ha-de tirar,
e eu s' posso ficar bom
quando comtigo casar.

'--' senhor dono da casa,
mande vir alguma cousa;
j' est' co'a guella secca
o Manduca Z' de Souza.

'--Sem leit'o n'o ha pagode,
sem bebida violeiros;
o Casusa est' com s'de,
mande vir, Sr. Medeiros.'


X

'--Muito bem, muito bem! gritaram todos,
qualquer dos dois ' um tebas p'ra cantar,
e dansam que faz gosto e mette inveja
a quem os v' n'um samba a requebrar.

'--Voc's que tomam? vinho ou paraty?
--Eu c' j' tomei vinho e n'o misturo...
--E dois.--Pois aqui tem, ataquem deste,
que ' bom, ' de patente, ' vinho puro.'

Depois de beberem voltaram p'ra roda
ao som da viola, tocando e cantando,
ao longe se ouvia o tinir das chilenas,
as palmas cadentes dos mo'os dansando.


XI

A noiva estava com somno....
o noivo.... n'o sei se o tinha,
mas estava assim com cara
onde logo se advinha....
vontade de se ir deitar.

A madrinha, disfar'ando,
para o quarto do noivado
foi com ella, onde ajudou-lhe
a tirar o v'o bordado
e a grinalda virginal.

Desapertou-lhe o vestido
e em saia branca a deixou....
baixinho deu-lhe conselhos,
depois a porta cerrou
deixando-a ficar sosinha.

De repente ouviu-se um grito!
era a voz de Margarida,
e um toque de campainhas,
que prolongou-se em seguida,
indicava o quarto della.

Todos correm pressurosos,
perguntam: 'Que aconteceu?'
Dona Olympia mais ligeira
do que todos, l' correu,
fechou a porta, e que viu?!

Viu na cama semeados
carrapichos aos milh'es!
alfinetes espetados!
e por baixo dos colch'es
campainhas penduradas!

E a pobre da menina
que se foi sentar na beira...
espetou-se n'o sei onde,
nem como, de que maneira
fez dobrar o carrilh'o.

N'o p'de dormir na cama!
foi p'ra o quarto da madrinha.
O noivo tremeu com frio,
a noiva ficou sosinha
scismando.... nos carrapichos.

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Percebes, meu leitor, que eu n'o desejo
entrar n'alguns detalhes melindrosos;
respeito o sanctuario da familia
e deixo a indaga''o aos curiosos.





XII

Um anno j' se passou
Depois que vi estas scenas,
mas inda tenho saudades
d'aquellas boas pequenas.

Ha tres dias, por acaso,
n'um bond do Pedregulho
encontrei o _seu_ Medeiros
que levava um grande embrulho.

'--Como vai? me disse elle,
' homem, n'o apparece!
pois olhe, todo o meu povo
do senhor nunca se esquece.

'J' soube que a Margarida
teve um filho o mez passado?
--N'o, senhor!--Pois ' verdade!
e p'ra o mez ' o baptizado!

'N'o falte e leve os amigos,
porque temos brincadeira;
vim ' c'rte s' para isto,
e ando assim desta maneira!'

E apontou-me o embrulho
que mettera sob o banco,
e nisto o maldito bond
deu um enorme solavanco.

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Leitor, se l'ste attento estes meus versos,
' que 's bom, condescendente e meu amigo.
Has-de ir pagodear l' na fazenda,
eu posso convidar-te: vais comigo.

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